PEC 18/2011 e a infância sob ataque

Brasil vê-se na iminência de instituir um franco retrocesso social: reduzir a idade mínima para ingresso no mercado de trabalho

Brasília (DF) - Nesta semana, está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados a PEC 18/2011, que pretende reduzir a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho. Em síntese, a proposta prevê a alteração do artigo 7º, XXXIII, da Constituição Federal para permitir que adolescentes, a partir de 14 anos, trabalhem “sob o regime de tempo parcial”.

Desde 1998, a Constituição autoriza o trabalho para pessoas com mais de 16 anos – antes disso, apenas na condição de aprendiz a partir de 14 anos. Estes marcos etários não foram construídos de forma aleatória. O Brasil é signatário da Convenção nº 138 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), por intermédio da qual assumiu o compromisso de seguir uma política nacional que assegure a efetiva abolição do trabalho de crianças e eleve, progressivamente, a idade mínima de admissão no trabalho, a qual “não deverá ser inferior à idade em que cessa a obrigação escolar”.

No país, a educação básica obrigatória e gratuita deve ser garantida pelo menos até 17 anos de idade. Portanto, o Estado brasileiro, que já deveria ter elevado a idade mínima para o trabalho para 18 anos, vê-se, a partir da PEC 18/2011, na iminência de instituir um franco retrocesso social – reduzir a idade mínima para ingresso no mercado de trabalho, na contramão da doutrina da proteção integral, dos tratados internacionais ratificados e do patamar mínimo civilizatório já alcançado.

O trabalho a tempo parcial se diferencia do contrato de trabalho padrão apenas no que tange à jornada semanal, que pode chegar até 30 horas semanais. Este tipo de vínculo empregatício é muito distinto da aprendizagem profissional permitida hoje a partir dos 14 anos. No contrato de aprendizagem profissional, preponderam os aspectos educativo, pedagógico e profissionalizante, com garantia de matrícula e frequência escolar, ensino teórico e prático de um ofício, salário-mínimo/hora, jornada de trabalho reduzida também de até 30 horas semanais e todos os demais direitos trabalhistas e previdenciários assegurados. De forma equivocada, quiçá maliciosa, a PEC coloca estes dois contratos em idêntico patamar, como se fossem a mesma coisa, quando na realidade não são!

Diante da possibilidade de inserção de adolescentes de forma protegida e adequada em programas de aprendizagem profissional, a partir de 14 anos, é de se questionar: por que não estimular e investir para concretizar este direito, já previsto na legislação, ao invés de tentar criar mecanismos de precarização do trabalho de adolescentes, como pretende a PEC?

A PNAD Educação de 2019 corroborou dado já conhecido: a transição do ensino fundamental para o médio é período crítico de aumento da evasão escolar no Brasil. Aos 15 anos, o percentual de adolescentes que abandonam a escola quase dobra em relação à faixa etária anterior, passando de 8,1%, aos 14 anos, para 14,1%, aos 15 anos.

O fechamento das escolas públicas e o desafio do ensino remoto durante a pandemia provocou um incremento do abandono escolar. Justo no momento de união de rede de proteção para a busca ativa para regresso de adolescentes à escola, a PEC tenta reduzir a idade para o trabalho, aumentando a probabilidade de que mais adolescentes acabem indo para o mercado de trabalho precocemente em detrimento da escolarização, e de que aqueles já afastados dos bancos escolares se distanciem ainda mais.

Por outro lado, há razões fisiológicas, sociais e econômicas para a garantia do direito dos adolescentes de não trabalhar antes de idade devida ou fora das condições apropriadas. Adolescentes são pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, em formação física, mental, psíquica, moral e emocional e por isso precisam ser especialmente assistidos e protegidos, inclusive do trabalho.

Nos últimos 13 anos, 290 crianças e adolescentes de cinco a 17 anos morreram enquanto trabalhavam, e 29.495 sofreram acidentes graves. Também entre 2007 e 2020, 49.254 tiveram algum tipo de agravo à saúde. Os dados são do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), divulgados em 2021 pelo Ministério da Saúde. Estes números são alarmantes, mas estão longe de representar a realidade, já que a subnotificação é admitida pelo próprio órgão.

O trabalho precoce, ao provocar a queda de rendimento e evasão escolar, contribui para acentuar a falta e a redução da qualificação profissional, um dos principais desafios da economia brasileira e queixa constante dos empregadores, que alegam dificuldades em preencher cargos e funções que exigem expertise técnica. Além disso, o emprego de adolescentes muito jovens pode contribuir para piorar o cenário de desemprego da população adulta, que já atinge mais de 14 milhões de pessoas.

O relatório da PEC, de autoria do deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), apresenta como uma das justificativas para a redução da idade mínima o suposto efeito preventivo do trabalho para o envolvimento com a criminalidade.

Segundo o relator, os adolescentes devem trabalhar para evitar que se envolvam com o crime. Trata-se de um dos mais arraigados mitos dos defensores do trabalho infantil, que enxergam apenas duas opções para adolescentes negros, pobres e periféricos: trabalhar ou se tornar um infrator da lei.

Este falso dogma não tem fundamento em qualquer evidência probatória. Ao contrário, há vários estudos mostrando que o trabalho antes da idade correta e fora das condições apropriadas pode ser um fator de aproximação de adolescentes com o álcool, as drogas e o aliciamento para atividades ilícitas. Além disso, por que esses adolescentes não poderiam exercer o seu direito de acessar outras oportunidades, como, por exemplo, condições adequadas para a continuidade de seus estudos, o lazer, o esporte e a cultura?

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) debateu o tema da redução da idade para o trabalho no Brasil nos autos da ADI 2096. O ministro Celso de Mello, ao proferir o voto condutor que levou à improcedência, por unanimidade, da ação que pedia a inconstitucionalidade da Emenda 20/1998, acentuou, com propriedade, que impor o trabalho a pessoas com menos de 16 anos para afastar o adolescente pobre da marginalização e da delinquência seria sacrificar o melhor interesse da criança com o fim de preservar a paz e a segurança jurídica.

Assinalou que essa equivocada visão de mundo “além de fazer recair sobre a criança e o adolescente indevida e preconceituosa desconfiança motivada por razões de índole financeira, configura manifesta subversão do papel constitucionalmente atribuído à família, à sociedade e ao Estado, a quem incumbe, com absoluta prioridade, em relação à criança e ao adolescente, o dever de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF, art. 227)”.

E o que traz o relatório da PEC 18/2011 é justamente essa inversão de valores e a subversão de papéis da família, da sociedade e especialmente do Estado, colocando sobre adolescentes o ônus de auxiliar no sustento de sua família e de manter-se longe da trajetória infracional. Trata-se de mais um ataque à infância!

FONTE: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pec-18-2011-infancia-sob-ataque-03112021

-- 

Esta matéria tem cunho informativo. Permitida a reprodução mediante citação da fonte.

Assessoria de Comunicação Social
Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais
Tel. (31) 3304-6291
prt03.ascom@mpt.mp.br
Twitter: @MPT-MG

Imprimir