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Artigo: O trabalho infantil na cadeia produtiva de grandes empresas

Marques Casara*

Mais de 80% da população brasileira vive em cidades, um índice semelhante ao de países desenvolvidos. É um processo de urbanização que cresce, continuamente, desde 1940. Ainda assim, do ponto de vista do mundo do trabalho, há atividades que seguem na contramão dessa tendência. É o caso do trabalho infantil abaixo de dez anos de idade. Ele acontece, na maioria das vezes, na zona rural. Depois, conforme aumenta a idade, o trabalho infantil urbano se sobrepõe ao rural, acompanhando a maioria populacional. Esse entendimento é importante para contextualizar a complexidade desse grave fenômeno, que está distribuído em diferentes faixas etárias e em diferentes agrupamentos econômicos: agricultura, pecuária, serviços, alimentação, comércio, reparação, mineração, indústria, dentre outros.

O trabalho infantil tem pouca visibilidade nos meios de comunicação. Quando aparece, é como denúncia pontual, flagrante de fiscalização ou reportagem referente a evento ou data representativa. Falta um olhar aprofundado, de modo a entender a questão pelo seu caráter sistêmico: o envolvimento de complexas redes de exploração. O trabalho infantil contemporâneo geralmente está associado a redes econômicas e também a outras formas de violência.

Multinacionais do chocolate

Em muitos casos, os reais beneficiários ou financiadores dessas atividades estão a milhares de quilômetros de distância, em escritórios climatizados, protegidos por atravessadores, sócios ocultos, intermediários, agentes públicos corruptos. São empresas que, deliberadamente, usam crianças e adolescentes como mão de obra barata, em busca de rentabilidade. Em algumas cadeias produtivas, como no setor de alimentos, usam sonegação e fraudes tributárias como elemento adicional para esconder ou maquinar o patrocínio de violações aos direitos humanos.

É o que acontece, por exemplo, na cadeia produtiva do chocolate. Mesmo confrontadas com provas documentais, fotos, vídeos, depoimentos de pais e professores - e também das próprias vítimas -, as grandes empresas de alimentos se recusam a discutir publicamente as consequências de explorarem mais de sete mil crianças e adolescentes, em lavouras localizadas nos estados da Bahia e do Pará.

Investigação realizada por este autor por quase dois anos, em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho, ainda aguarda o posicionamento público das maiores multinacionais de alimentos do mundo: Nestlé, Cargill, Mondelez e Barry Callebaut, dentre outras. Explicar o porquê de venderem, deliberadamente, chocolate fabricado graças a exploração de mais de sete mil crianças e adolescentes, que a partir dos cinco anos de idade começam a colher o cacau que será transformado nas barras dos chocolates que compramos para nós e para nossos filhos.

Cadeias produtivas

O mesmo acontece em outras importantes atividades econômicas. É o caso, por exemplo, do setor do vestuário. Investigações deste autor, realizada desde 2016, identificaram mais de um milhão de mulheres costureiras, trabalhando em casa, sem condições mínimas de saúde, segurança e ergonomia. Costuram, por centavos, roupas para as maiores magazines em atividade no país. Nessas oficinas, milhares de crianças são superexploradas, em atividades arriscadas e degradantes. Mães e filhos menores explorados por corporações com centenas ou milhares de lojas no Brasil e no mundo.

Seria possível citar aqui muitos casos. Os mencionados acima servem para exemplificar que crianças e adolescentes, em atividades de trabalho infantil, em grande parte das vezes estão a serviço de grandes empresas.

Corporações fundamentais para a manutenção de empregos e da economia global, mas que também exploram crianças e escravos em busca de um único objetivo: rentabilidade, sem levar em conta o valor da vida. O valor da vida, em suas cadeias produtivas, não entra nos cálculos financeiros e administrativos. Assim como não entra em suas propagandas sobre responsabilidade social empresarial, muitas vezes em conivência com organizações do Terceiro Setor, mantidas por essas mesmas empresas.

Sociedade civil

Apesar dos esforços do Ministério Público do Trabalho, do Poder Judiciário, dos órgãos de fiscalização, da sociedade civil organizada e dos meios de comunicação, ainda há muito o que fazer. Sem uma tomada de consciência por parte das empresas, o cenário não vai mudar. Grandes empresas que jamais explorariam crianças e adolescentes na Europa e nos Estados Unidos, o fazem na África e na América do Sul. Por que a responsabilidade social dessas corporações é seletiva?

Cabe também um maior esforço das organizações da sociedade civil, como o Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Essas organizações devem cobrar, publicamente e com total e plena transparência em relação às empresas que as financiam, uma postura condizente com o século XXI.

Não é possível aceitar que as coisas ainda sejam como no início da Revolução Industrial, quando crianças, exaustas de tanto trabalhar, eram mergulhadas em poços de água gelada para que seguissem despertas e trabalhassem, muitas vezes, até a morte.

Até quando o setor produtivo e seus institutos e fundações taparão o sol com a peneira?
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* Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. É autor do livro Vidas Tragadas, sobre trabalho infantil na produção de fumo, publicado pela Papel Social, em parceria com o Ministério Público do Trabalho do Paraná, a ACT Promoção da Saúde e a APREA.

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